A REFORMA PROTESTANTE COMO NOSSA PEDAGOGA
Introdução
Cada
geração tem traços peculiares de sua época. Com a nossa não é diferente. Uma
marca de nosso tempo é que não temos apreço pelo passado. Todos temos história
familiar, mas poucos têm interesse pela sua. Conhecemos quase nada sobre os
nossos ancestrais. A nossa raiz genealógica é totalmente ignorada. Quando as
coisas são ampliadas para o campo da história geral, fica ainda mais evidente
que os filhos hodiernos não dão importância à história.
Para
a nossa geração, os acontecimentos são deixados debaixo do escombro do passado,
assim como os personagens que marcaram a época e deixaram um legado são
ignorados. Quase sempre tratamos o passado como algo obsoleto e antiquado, um
aspecto sem valor. Todavia, uma análise acurada fará com que a nossa percepção
daquilo que aconteceu seja alterada. Uma “investigação” mudará o modo como
lidamos com o que foi realizado.
A
história, portanto, transmite uma herança valiosa para aquele que deseja
compreender o seu presente, a fim de tomar algumas medidas quanto ao futuro. Ela
pode ser para o presente um instrumento instrutivo e possuir um aspecto
admoestador e pedagógico, pois pode advertir quanto ao perigo e endireitar a
nossa rota. Como herança, enriquece o nosso intelecto e nos ajuda na
compreensão de situações emergentes.
A
leitura da história deve ser feita dentro de uma observação daquilo que serve
para nos advertir, bem como para nos orientar. Além do mais, a história tem
como finalidade recordar-nos sobre fatos importantes que podem direcionar e
redirecionar a nossa vida rumo ao futuro. A Reforma Protestante pode servir de
base de comparação, ou melhor, de referencial para uma avaliação daquilo que
tem acontecido agora, para que a geração cristã contemporânea possa avaliar a
situação na qual a igreja encontra-se, pois só assim poderá cumprir a sua
missão de ser sal da terra e luz do mundo.
Ainda ressaltamos que as mudanças têm efetivado não somente uma
colisão na estrutura social, mas também no modo como pensamos e lidamos com a
história. Com isso, o impacto existencial na sociedade tem uma conexão com o
passado, pois o presente é fruto de um processo lento vivenciado agora enquanto
aquilo que chamamos história. O que aconteceu durante o tempo que denominamos
ontem pode trazer consequências negativas ou positivas para o hoje e o amanhã.
Somos filhos de nosso próprio tempo, mas também frutos de uma gestação
histórica. Somos de muitos modos influenciados pelo processo histórico. E por
isso somos o que somos, pensamos o que pensamos e fazemos o que fazemos.
De
sorte que a soma daquilo que ocorreu, bem como daquilo que ocorre agora, sem
dúvida alguma determinará algumas situações vindouras. Todavia, a história da
igreja não precisa ser uma catástrofe lá na frente. Mas, para que isso
aconteça, a igreja precisa compreender a sua situação presente para buscar
resposta na história, a fim de não perder a diretriz acerca do porvir. Não
devemos ser aprisionados pelo passado, mas devemos voltar lá para pegarmos
referênciais que possam ajudar-nos no presente.
A igreja necessita fazer uma viagem ao passado, porque
diversas vezes a solução para um problema contemporâneo tem sua solução lá
atrás. Uma enfermidade pode ser curada com um antídoto feito há algum tempo. O
problema até pode ser “novo”, mas a solução, antiga e eficiente. Basta lermos a
história com os óculos certos para encontrarmos uma diretriz apropriada.
Se
o nosso entendimento é que a história tem muito a nos ensinar, o que podemos
aprender com a Reforma Protestante enquanto acontecimento histórico? Muitas
lições podem ser extraídas desse momento que se tornou um marco na história
ocidental. Aqui, todavia, vamos destacar duas:
Primeiro, a
Reforma Protestante como nossa pedagoga ensina que a história é dinâmica. Enquanto
evento, ela instrui que a vida ou a existência da igreja não é estática. Todavia, nem sempre aqueles que
fazem parte da liderança eclesiástica acompanham as mudanças, percebem os equívocos
e discernem os desvios de seu próprio tempo. Outros veem a real situação, mas são covardes. Não
querem lutar pela verdade. Além disso, para tantos outros é confortável manter
as coisas do jeito que se encontram.
A
liderança que antecedeu o período da Reforma do século XVI teve a sua
oportunidade para realizar mudanças necessárias na igreja. Mas, a sua
opulência, o seu excesso de autoridade, o seu status promovido pela instituição
e a sua condição espiritual não permitiram que aquela liderança percebesse como
a “igreja” estava deixando de cumprir o seu papel. Da forma como estava, o seu
fim seria trágico.
Por
outro lado, durante tal período várias vozes ecoaram como proféticas. Alguns
movimentos surgiram para protestar contra a situação na qual a igreja estava submergida,
mas nada adiantaram, foram ignorados. Homens ergueram a voz para mostrar a
negligência no que tange a pregação e instrução bíblica aos fiéis. O rebanho
tinha sido deixado a mercê de sua própria sorte. Porém, quando as
mudanças/reformas estão a cargo da instituição, cuja representatividade está
sob aqueles que usufruem da benesse institucional, nada será efetuado.
Nossa geração precisa aprender que as mudanças nunca
acontecem quando ficam à mercê da estrutura institucional. Ainda que as vozes
gritem para que sejam realizadas mudanças. Há, entretanto, um enrijecimento
institucional que impede a flexibilidade que envolve alterações. Por conta
disso, as vozes são ignoradas, os clamores, sufocados e o grito por mudança,
cerceado. Por isso, as transformações não são concretizadas, além de outras
razões, é claro.
A leitura acerca do quesito aqui abordado vem tanto para
alertar quanto para trazer esperança. Primeiro, se o “poder” de acompanhar o
fluxo da história, a qual apresenta a necessidade de transformação, estiver sob
a nossa responsabilidade de fazê-lo e, por razão egoísta, não o realizarmos, seremos
cobrados. Segundo, por outro lado, mesmo que a instituição[1]
impeça que tais reformas sejam realizadas, precisamos aprender que o sopro de
Deus virá sobre a sua igreja. Saiba que o corpo de Cristo não é a denominação a
que pertencemos, mas a igreja, a qual é formada por pessoas redimidas.
Precisamos
ler a história para encontramos os vestígios da ação poderosa do Senhor no
passado. Quando a instituição tenta impedir as reformas, urge a necessidade de
compreendermos que um povo será levantado para fazer aquilo que apraz ao
Senhor. Em momentos específicos, Deus levanta homens que sempre estiveram no
anonimato. Eles são erguidos pelo poder do Espírito Santo, para que o povo de
Deus ouça a boa nova do evangelho e a glória de Deus seja anunciada e conhecida.
Portanto, nada nem ninguém pode aprisionar a mensagem gloriosa do evangelho da
graça.
A
história é nossa pedagoga. Ela prova de modo inegável que o mover do Senhor não
pode ser confinado por nenhuma teologia, nem pode ser moldado pela forma, nem
mobilizado pelo braço da instituição. Deus sempre esteve acima de tudo isso.
Quando a Igreja Católica pensava que tinha a hegemonia teológica, Deus levantou
Lutero para golpeá-la. Fica claro que o Espírito Santo é soberano. Ele é livre
e poderoso. Sopra onde quer, sobre quem quer, usa quem quer, a hora que quer e
realiza o que lhe apraz.
Segundo,
a Reforma Protestante como nossa pedagoga ensina que a linguagem precisa ser
contextualizada. Para entendermos o ponto em questão, precisamos ver o que
aconteceu antes e durante a Reforma e como era a linguagem teológica durante a
Idade Média. A história dá conta que por séculos, durante boa parte do período,
a teologia ficou distante da realidade do povo.
Naquele
tempo o reduto de discurso da igreja estava confinado às cátedras. Não eram
somente as paredes das universidades que impediam o povo de ter acesso à
mensagem, mas também a linguagem incompreensível. Era uma teologia cuja
mensagem era produzida somente para o espaço acadêmico, a qual não atingia a
mente do “leigo”. Dentro daquela realidade, ficava no campo do abstrato, não
chegava à concretude humana social e histórica. Não se materializava, porque
não era prática e, portanto, também não tinha como ser praticada.
Note
que o período que antecedeu a eclosão da Reforma Protestante foi marcado pela
pujança da teologia escolástica, que foi robusta em sua produção, mas raquítica
em sua praticidade. Feita na universidade para aqueles que eram da universidade
e viviam dentro do ambiente acadêmico. Portanto, estava longe da realidade do
povo. Distante da mente do populacho, que não alcançava nem o intelecto nem as
mãos, pois as pessoas não tinham como praticar aquilo que não entendiam.
Segundo
González, a teologia daquele tempo tinha “[...] por base distinções cada vez
mais sutis e um vocabulário cada vez mais especializado [...]”.[2]
E, por fim, conclui: “[...] essa teologia perdeu contato com a vida diária dos
cristãos, dedicando boa parte dos seus esforços a questões que interessavam
somente aos próprios teólogos”.[3]
Diríamos que era um capricho da mentalidade daquele tempo, uma pompa
intelectual, uma verdadeira elucubração filosófica.
Claro
que nem tudo pode ser ignorado nem rejeitado daquilo que foi produzido naquele
tempo, nem essa é a proposta aqui. Não somos contrários à produção teológica da
universidade, mas o que percebemos, assim como aprendemos da história da Reforma
Protestante, é que os pré-reformadores, bem como os reformadores propriamente
ditos, conseguiram trazer para o povo a mensagem da boa nova com uma linguagem inteligível
e compreensiva para aquela geração.
No
século XII, por exemplo, o pregador itinerante Pedro Valdo esforçou-se para
distribuir porções da Escritura na língua do povo. Além disso, o culto passou a
ser realizado na língua comum da população. Mais tarde, mesmo sob dura
perseguição, os seus discípulos conseguiram lograr êxito entre muitos
camponeses e operários.[4]
No século XIV, outro homem, John Wycliff, fez com que a mensagem chegasse até os
ingleses. Os seus tratados contra a opulência, os desvios e os equívocos da
Igreja Católica tinham uma “[...] linguagem acessível ao povo comum”.[5]
Além disso, Wycliff formou uma liderança de gente simples, porém homens cultos
para espalhar a palavra de Deus entre os ingleses.[6]
Caetano ressalta que seu maior legado “[...] foi a tradução da Bíblia para a
língua do seu povo”.[7]
Muitos
outros homens durante o período da Idade Média tiveram os mesmos intentos,
entretanto foram cerceados pela perseguição implacável da Igreja Católica.
Todos eles de alguma forma trouxeram contribuições importantes acerca dessa
matéria. Serviram de instrumentos preparatórios para aquilo que haveria de
acontecer no século XVI.
Diante
disso, sem sombra de dúvida, os reformadores conseguiram efetivamente colocar a
mensagem numa linguagem que fosse acessível ao povo e ao mesmo tempo
compreensível. Lutero é muito lembrado pelas 95 teses afixadas na capela de
Wittenberg, por intermédio das quais condenava os abusos e as distorções
doutrinárias da Igreja Católica. Contudo, o mais magnífico feito do monge
alemão foi colocar a Escritura entre o povo. Para que isso acontecesse requereu
uma contextualização de linguagem bíblica. Ainda, foi por Lutero que hinos
robustos na teologia ganharam o coração do povo. Depois de muito tempo, o
cristão passou a cantar aquilo que acreditava. Os hinos cantados foram uma
forma de contextualizar as verdades absolutas do evangelho. Com isso, Nichols afirma que: “Os alemães se congregavam
em torno dessa religião cristã de portas abertas, de consciência aberta e de
Escrituras abertas”.[8]
O nosso
momento também tem as suas complexidades próprias. Muitas coisas mudaram. A
nossa geração vive num período que tem sido denominado “era da informação”.
Dentro desse campo, a comunicação ocorre de diversas formas e por intermédio de
variados meios. Todavia, os homens não mudaram, ainda vivem cheios de temores,
regidos por falsas esperanças e dominados por crendices. Nosso mundo ainda é habitado
por homens pecadores, com as mesmas necessidades de outrora. Sendo assim, não
precisamos de uma nova mensagem, mas, uma coisa é certa, ncessitamos contextualizar a mensagem.
Nossa
convicção é de que a verdade proclamada pelo reformadores no século XVI também
deve ser pregada no século XXI, diz Horton, porém, “[..] é preciso entender
melhor a condição do moderno e pós-moderno antes que o evangelho possa ser
dirigido a nossos contemporâneos com poder e impacto”.[9]
A história da Reforma Protestante enquanto nossa pedagoga pode auxiliar-nos na
contextualização da mensagem bíblica para nossa geração.
Em
primeiro lugar, como aprendizes que somos, temos que ter bem assentado em nossa
mente que a história da igreja continua em movimento e jamais deve ficar paralisada,
pois é um corpo vivo que anda, vê, fala, pensa, cria, percebe, discerni e
reflete. Se nalgum momento a “igreja” ficar confinada à estrutura institucional/denominacional,
morrerá asfixiada, para depois disso virar uma múmia, porque a igreja vai além
da estrutura institucional. Não podemos esquecer que o oxigênio da igreja não
vem da instituição. Aliás, a instituição pode até mesmo “matá-la”.
Em
segundo lugar, como alunos da história, temos o dever de ler a nossa própria
época, fazer um diagnóstico da nossa geração para pregar o evangelho. O homem
continua sendo pecador. As suas necessidades só podem ser supridas pelo evangelho. Contudo, a
igreja tem a responsabilidade de fazer uma contextualização da mensagem.
Concluímos,
portanto, que embora a nossa geração não precise de uma nova mensagem nem outra
qualquer, devemos, porém primar pela pregação contextualizada, dentro da
realidade contemporânea. A mensagem não pode ser sonegada ao povo, mas também
cabe à igreja fazer com que seja acessível e compreensível
em sua geração, época e contexto. Esse é o nosso dever de cristão. Essa é nossa
missão como igreja. Aprendamos com a história da Reforma Protestante. Ela pode
ser a nossa pedagoga.
[1]
Uso aqui a palavra instituição como o propósito para se referir às denominações
eclesiásticas.
[2]
GONZÁLEZ, Justo L.; Visão panorâmica da história da igreja. São Paulo: Vida Nova,
1998. p. 16.
[3]
GONZÁLEZ, Justo L.; Visão panorâmica da história da igreja. São Paulo: Vida Nova,
1998. p. 16.
[4]
NICHOLS, Robert Hastings; História da igreja cristã. São
Paulo: Cultura Cristã, 2000. p. 143.
[5]
NICHOLS, Robert Hastings; História da igreja cristã. São
Paulo: Cultura Cristã, 2000. p. 146.
[6]
NICHOLS, Robert Hastings; História da igreja cristã. São
Paulo: Cultura Cristã, 2000. p. 146.
[7]
CAETANO, FABIO HENRIQUE DE JESUS; História e teologia da evangelização.
São Paulo: Arte Editorial, 2010. p. 58.
[8]
NICHOLS, Robert Hastings; História da igreja cristã. São
Paulo: Cultura Cristã, 2000. p. 163.
[9]
HORTON, Michael, Reforma hoje. São Paulo: Cultura Cristã, 1999. p. 125.
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