FELIZ AQUELE QUE PRATICA AQUILO QUE SABE
A contradição é uma marca inconfundível no século
XXI. Ela é vista em todos os seguimentos da sociedade contemporânea.
Hoje, vivemos um momento histórico de muita inconsistência entre
aquilo que se fala e aquilo que se faz. Estamos no apogeu da crise da
separação entre a ortodoxia e a ortopraxia. Existe uma ilha que
separa a doutrina da prática, a fé da obra, a graça da ética.
Existe um divórcio sem paralelo, nunca visto na história da igreja
entre conhecimento e prática. Hodiernamente, o mundo contemporâneo
é o mundo dos paradoxos. As ações são as ações da incoerência.
As atitudes são ambíguas. Agora, o saber é um tipo de poder muito
distante do fazer. Quem tem conhecimento julga ser um detentor do
poder, mas não efetua nenhuma ação cuja resposta seja fruto
daquilo que se sabe. O saber sem prática depõe contra a nossa
cosmovisão cristã.
No entanto, a
recomendação bíblica exige que seja feita uma conciliação
indissociável entre saber e fazer. O cristianismo histórico tem um
conteúdo que informa a mente, porém, tal informação precisa
desembocar numa prática factível. Cristo deseja que as pessoas
sejam atingidas pela mensagem que alcança o intelecto e transforma o
coração. Ele valoriza tanto o conhecimento que atrela a vida eterna
ao conhecer a Deus. Jesus diz: “E
a vida eterna é esta: que te conheçam a ti, o único Deus
verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviaste”
(Jo 17. 3). Todavia, o
conhecimento do qual Jesus fala não está desvinculado da fé.
Conhecer é tão necessário quanto ter fé. Aliás, a salvação
também é conhecimento. Contudo, o Senhor repudia o saber que não
pode ser medido pela prática. O prólogo do Livro de Apocalipse,
diz: “Bem-aventurado
aqueles que leem e aqueles que ouvem as palavras da profecia e
guardam as coisas nela escritas, pois o tempo está próximo”
(Ap 1. 3). Sendo
assim, não basta ler e ouvir, é preciso guardar aquilo que foi
recebido como informação. Só são verdadeiramente felizes aqueles
que leem, ouvem e guardam. Quando as pessoas apenas leem e ouvem,
mas, não guardam as palavras da profecia, não são verdadeiramente
felizes.
Por isso, que, para o Senhor Jesus, a felicidade não
tem como fundamento o armazenamento ou acúmulo de conhecimento. Para
Ele, a felicidade tem como alicerce o conhecimento que resulta em
prática. Ele jamais emitiu carta de divórcio entre o saber e o
fazer. Após ensinar aos seus discípulos com palavras e com
exemplos, Jesus disse: “Ora, se sabeis estas cousas,
bem-aventurados sois se as praticardes” (Jo 13. 17). Não tem nada
mais impactante do que a comprovação do conhecimento pela prática.
Da mesma forma, não existe nada mais desastroso que a dissociação
daquilo que se fala com aquilo que não é realizado. Quando o
conhecimento fica apenas no âmbito da teoria, as pessoas não
conseguem encontrar o valor do saber. A verdade anunciada pelo Senhor
Jesus nunca esteve dissociada da prática.
Temos muitos teólogos
cuja teologia é um edifício monumental de ideias metafísicas. Eles
constroem um arcabouço substancioso de argumentos lógicos sobre
suas convicções. Suas construções teológicas são convincentes.
Falam de humildade cheios de razão. Suas argumentações sobre a
necessidade de servir têm amparo escriturístico. Os seus discursos
apologéticos quanto ao senhorio de Cristo, são bíblicos. Todavia,
não fazem absolutamente nada daquilo que sabem e nem daquilo que
falam. São pregoeiros cujos discursos são vazios. Falam, mas, não
comprovam pelo fazer o que sabem. Eles são os fariseus pós-modernos.
São doutrinadores, porém, jamis praticam o que falam, pois “atam
fardos pesados [e difíceis de carregar] e os põem sobre os ombros
dos homens; entretanto, eles mesmos nem com o dedo querem movê-los”
(Mt 23. 4).
A história comprova
que existe uma diferença colossal entre aqueles que sabem, e,
aqueles que sabem e fazem o que sabem. Tiago, quando trata da matéria
da fé, tendo como medidor as obras, faz uma pergunta que remete ao
assunto aqui abordado: “Crês,
tu, que Deus é um só?” (Tg
2. 19). Uma pergunta dessa natureza, dentro de um ambiente cristão,
tem uma resposta óbvia. Ele diz: “Fazes bem” (Tg 2. 19). Para
Tiago, tal assertiva não é novidade nem é incomum, pois: “Até
os demônios creem e tremem” (Tg
2. 19). Temos aqui uma afirmação teológica correta. Crer que Deus
é único demonstra uma construção teológica estritamente
ortodoxa. Porém, não basta ter informação ortodoxa sobre a pessoa
de Deus. Teologia, conhecimento e fé que não encontram ecos
práticos, iguala-se à fé de demônios. Parabéns para aqueles que
creem que Deus é um só. Teologia correta. Entretanto, isso não
basta, porque “até
os demônios creem e tremem” (Tg
2. 19).
Portanto, a construção teológica que sistematiza a
pessoa de Deus como sendo um só, que avança ao afirmar a sua
Triunidade, pois, além de ser Único, Ele subsiste em três pessoas
distintas: Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo, mas, que
porém, não encontra eco vivencial, sem dúvida alguma, não difere
daquele conhecimento ou fé encontrada nos demônios. Os demônios
sabem que Deus existe, admitem a sua unicidade, até tremem diante do
axial supracitado. Eles sabem muito de teologia; sabem quem é Deus.
Contudo, tal conhecimento não se encarna na existência dos
espíritos caídos, não transforma sua índole, não muda sua
disposição para o arrependimento, e não traz implicações sociais
nem históricas para a prática do bem. Embora os demônios tenham
muito conhecimento, entretanto, não praticam aquilo que sabem. Ao
invés de fazerem o bem, eles só fazem o mal.
O cristão, todavia,
precisa ser diferente, pois é chamado para ser um agente do reino.
Ele é comissionado para realizar aquilo que sabe dentro da realidade
visível. Cristo diz: “Porque
eu vos dei o exemplo, para que, como eu vos fiz, façais vós também”
(Jo 13. 15). De que
exemplo Cristo está falando? Basta voltarmos um pouco, para obtermos
a resposta. Jesus estava participando de uma refeição com os seus
discípulos, quando de repente, “levantou-se
da ceia, tirou a vestimenta de cima, e tomando uma tolha, cingiu-se
com ela. Depois, deitou água na bacia e passou a lavar os pés aos
discípulos e a enxugar-lhos com a toalha com que estava cingido.
Depois de lhes ter lavado os pés, tomou as vestes e, voltando à
mesa, perguntou-lhes: compreendeis o que vos fiz? Vós me chamais o
Mestre e o Senhor e dizeis bem; porque eu o sou. Ora, se eu sendo o
Senhor e o Mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os
pés uns dos outros” (Jo
13. 4, 5, 12-14). Depois disso chegamos a afirmação: “Porque
eu vos dei o exemplo, para que, como eu vos fiz, façais vós também”
(Jo 13. 15). Ele
prossegue: “Em
verdade, em verdade vos digo que o servo não é maior do que seu
senhor, nem o enviado, maior do que aquele que o enviou”
(Jo 13. 16). O
propósito de Cristo não é criar uma teologia de lava pés. Seu
propósito é fornecer uma teologia que abarca tanto a humildade
quanto o serviço ao próximo no da irmandade.
Portanto, o cristão
que não coloca as vestes da humildade nem o espírito servil, por
certo, ainda não compreendeu o ensino de Cristo. A maior crise
existencial de um cristão é aquela na qual se vive somente para si
mesmo, “sem
nenhuma relação com um projeto existencial que se realize
historicamente mediante a perspectiva missionária de ser uma bênção
para a sociedade humana”.i
O exemplo dado por
Cristo, pôde ser visto. Não se tratava de uma questão abstrata,
mas de uma situação concreta. Ele fez diante de seus discípulos
algo palpável de como se pratica aquilo que se sabe. O que demonstra
que uma pessoa de fato vivencia a experiência de estar com Jesus e
permanecer em Cristo não é o seu nível intelectual, mas a sua
demonstração vivencial daquilo que sabe. A palavra de Deus diz:
“aquele
que diz que permanece nele, esse deve também andar assim como ele
andou” (1Jo
2. 6). O conhecimento salvífico precisa ser comprovado pela
realização daquilo que se sabe como vontade de Deus. Porque está
escrito: “Ora,
sabemos que o temos conhecido por isto: se guardamos os seus
mandamentos. Aquele que diz: eu o conheço e não guarda os seus
mandamentos é mentiroso, e nele não está a verdade”
(1Jo 2. 3, 4). Todo conhecimento doutrinário, por mais ortodoxo que
seja, se não resultar numa ortopraxia histórica passível de
averiguação, com certeza não tem valor algum diante de Deus. Como
diz Caio Fábio: “o
saber teológico quase sempre produz um saber de Deus que não
corresponde a um viver de Deus. Já a vivência da realidade de Deus
como experiência nem sempre sabe como se explicar acerca de Deus,
mas sempre sabe como se portar diante dele”.ii
Uma teologia que não
possui um desembocamento empírico, por certo é uma teologia de
demônios. Tal teologia não serve para nada, a não ser para gerar o
orgulho do saber.
Precisamos entender
que, a doutrina que fica apenas no campo das ideias ou sem definições
concretas, sem ser encontrada na encarnação por intermédio de
personagens históricos, não passa de palavras vazias. Não que os
conceitos não tenham valor. Todavia, conceito sem forma definida
dificilmente encontra abrigo na experiência humana. Concordo com o
jornalista cristão, Philip Iancey, quando afirma: “o
evangelho da graça permeia o mundo não puramente por intermédio de
palavras e argumentos racionais, mas através de atos, através de
amor”.iii
Diria também que por
meio do serviço ao meu próximo.
Finalmente, podemos concluir que: Uma teologia voltada
para a questão metafísica, mas que não se encaixa na história das
pessoas, não passa de ideias abstratas. Uma teologia que não esteja
a serviço do outro perde a sua razão de ser. Precisamos sim de uma
teologia que trata da metafísica, mas que tenha eco na história do
ser humano. Uma teologia que fale da transcendência, sem contudo,
deixar de falar da imanência. Uma teologia que ecoe a sua voz de
cima para baixo, mas, que se espalhe no meio das pessoas. Uma
teologia cuja a voz seja celestial, mas que o seu eco seja ouvido na
história. Uma teologia que tenha muita informação, para alcançar
a razão humana, mas também precisamos de uma teologia que seja
vista por intermédio daquilo que é realizado por meio de palavras,
atos e ações. Precisamos de uma teologia que ensina que servir ao
outro é matéria para o agora. O serviço ao próximo deve ocorrer
no tempo que se chama hoje, no espeço que se denomina de agora e na
história que está sendo construída. Aquele que não serve aqui,
não servirá lá. Quem não serve agora, perde uma grande
oportunidade de desfrutar da felicidade oriunda do verdadeiro saber.
O exemplo de Cristo é factual, histórico, visível e palpável.
Aquele que pratica aquilo que sabe é feliz.
FÁBIO, Caio; Oração
para viver e morrer. Vinde Comunicações: Niterói – RJ,
1993. p. 31.
FÁBIO, Caio; Oração
para viver e morrer. Vinde Comunicações: Niterói – RJ,
1993. p. 24.
IANCEY, Philip; Alma
sobrevivente: sou cristão apesar da igreja. São Paulo:
Mundo Cristão, 2004. p. 148.
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